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O Brasil frente ao desafio de lidar com o superendividamento

Cresce o número de endividados no país: lei do superendividamento ainda precisa ser regulamentada e pode impactar o crédito

 

De modo geral, o brasileiro perdeu poder de compra, pressionado pelos índices elevados de inflação e desemprego. Também está mais endividado, sem orçamento suficiente para manter suas condições anteriores de vida e, adicionalmente, honrar as dívidas. O ambiente é favorável ao surgimento de uma legião de pessoas endividadas muito além do razoável.

O conceito de superendividamento foi incluído no Código de Defesa do Consumidor em 2021, a partir da Lei 14.181. Ele é definido como a impossibilidade manifesta de uma pessoa de boa-fé pagar a totalidade de suas dívidas de consumo sem comprometer seu “mínimo existencial”. Ainda dependente de regulamentação própria, esse patamar compreenderia a manutenção de condições dignas de vida.

A legislação veio como uma tentativa de dar mais rigidez às regras do crédito ao consumidor, bem como prevenir e lidar com o superendividamento. Nas atuais condições socioeconômicas do país, a condição preocupa especialmente, levando em conta que a proporção de brasileiros com dívidas tem batido recordes mês a mês. De acordo com o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), seriam ao menos 30 milhões de brasileiros nessa situação no ano passado. Em outubro de 2021, 74,6% da população tinha dívidas, conforme a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), divulgada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). São 8,1 pontos percentuais acima de outubro de 2020. A proporção é maior entre as famílias com renda inferior a dez salários mínimos, e o cartão de crédito aparece como a principal modalidade responsável pelo endividamento – sinal relevante, já que ele oferece o maior custo se o crédito se torna rotativo (quando o cliente não paga o total da fatura).

“É especialmente delicado o uso do crédito para despesas correntes, em cartão ou cheque especial. Os salários não comportam as necessidades básicas e é preciso comprometer a renda futura. A partir de então, um gasto excepcional já poderia levar ao superendividamento”, afirma Ione Amorim, coordenadora do programa de serviços Bnanceiros do Idec.

Uma preocupação a partir do ponto de vista econômico é que a legislação, quando houver a regulamentação sobre o mínimo existencial, possa afetar o mercado de crédito. “Há preocupações na imposição de um patamar inadequado do mínimo existencial, especialmente para o consumidor que não está em superendividamento. Quanto maior for o risco no pagamento do crédito, pode ocorrer um aumento da taxa de juros e da disponibilidade de crédito”, diz Eric Brasil, sócio da Consultoria Tendências, em São Paulo.

A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) simulou diferentes cenários e constatou que, a depender do parâmetro de mínimo existencial adotado, a redução na oferta de crédito no Brasil poderia variar de R$ 1 trilhão a R$ 250 bilhões. Na visão de diretores da associação, quanto maior for o valor do mínimo existencial, menor será a oferta de crédito a todos os consumidores, especialmente os de menor renda, o que poderá ampliar o endividamento.

Mitigar o superendividamento e resgatar o poder econômico do consumidor interessam ao sistema financeiro, já que um terço do spread bancário (diferença entre a taxa que as instituições financeiras pagam pela captação e a que incluem em empréstimos) se refere à inadimplência, segundo a Febraban.

Também seria uma chance de fomentar o mercado nacional, se os consumidores forem capazes de pagar dívidas e continuar comprando em outras áreas. De acordo com estudo da Ordem dos Economistas do Brasil (OEB) e do Instituto do Capitalismo Humanista, a nova legislação pode inserir na economia brasileira mais de R$ 350 bilhões, sem necessidade de ampliar gastos públicos.

“É relevante a atuação do poder público para harmonizar as relações de consumo e permitir o resgate dos consumidores superendividados ao mercado, beneficiando a economia nacional”, segundo as advogadas Laís Bergstein e Claudia Lima Marques, que foi relatora da Comissão de Juristas do Senado Federal para a lei do superendividamento.

Evidentemente, é possível ter dívidas sem recair no parâmetro considerado excessivo, que não é determinado por uma proporção fixa da renda, e sim pela capacidade de pagar outras contas. Entretanto, o comprometimento com crédito tem aumentado. A parcela média de renda implicada nesse segmento ultrapassa os 30%, segundo a pesquisa da CNC. Também tem crescido a quantidade de pessoas com atrasos maiores, acima de 30 dias, o que indicaria que, cada vez mais, são necessários prazos mais longos para arcar com os mesmos custos.

Embora esse seja o maior nível de brasileiros com dívidas desde 2010, quando a medição começou, a inadimplência está estável. O percentual de famílias com dívidas ou contas em atraso atingiu 25,6% do total. Entretanto, a CNC aponta que o indicador deve ser visto com cautela, considerando aumento dos juros para empréstimos.

A alta da taxa básica de juros (Selic), que tem subido para conter a inflação, se reflete no valor cobrado por novos empréstimos. Atualmente, o patamar é o maior desde o início da pandemia de Covid-19 no Brasil, em março de 2020. Em setembro, a média dos juros para as famílias chegou a 25,8% ao ano, de acordo com dados mais recentes do Banco Central. O valor é significativamente maior em certas modalidades, com destaque para o cartão de crédito, no qual está comprometida a maior parte dos endividados. O cartão de crédito parcelado tem juros médios de 168,7% ao ano e o rotativo, 339,5%.

Nesse sentido, a inflação de itens básicos, como alimentos e energia elétrica, pode ser fatal para as finanças das famílias que, na prática, se endividam todos os meses para arcar com esses custos. A inflação oficial dos últimos 12 meses, medida pelo Índice de Preços ao Consumidor (IPCA), chegou a 10,5% em setembro, no maior valor desde 2016. Entretanto, a realidade é mais cruel ao considerarmos itens da cesta básica, como carne e arroz, que aumentaram 24,8% e 11,3%, respectivamente; ou o gás de cozinha (34,6%) e energia elétrica (28,8%).

As famílias brasileiras comprometem cerca de um quinto de sua renda com alimentação e mais uma proporção um pouco menor com habitação, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE. Assim, dívidas que ultrapassam 30% do orçamento limitam significativamente as condições de vida da população – aumentando o risco de superendividamento e até inadimplência.

Apesar da instabilidade do cenário, o saldo de crédito – soma de todos os valores emprestados no sistema financeiro – obteve o maior valor da série iniciada em março de 2011, chegando a R$ 4,4 trilhões em setembro de 2021, segundo o BC. Isso significa que a oferta de crédito não foi impactada negativamente e não relaciona o aumento de taxas a uma baixa na disponibilidade.

A legislação propõe medidas para evitar o superendividamento. Entre os cuidados prévios, estão a proibição de pressionar consumidores para contratar serviço ou crédito, sobretudo no caso de idosos, analfabetos e outras pessoas vulneráveis. Se já se constatar o excesso de dívidas, a principal ferramenta é a conciliação para quitar os pagamentos.

O processo de repactuação de dívidas pode ser instaurado por um juiz, a pedido do consumidor, para discutir o plano de pagamento, que deve ter prazo de até cinco anos e preservar o mínimo existencial. Alternativamente, essa etapa pode ser cumprida por órgãos públicos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, como os Procons nos estados.

A ideia é que, no plano, constem redução de encargos e outras alternativas para atenuar a dificuldade do pagamento, além da suspensão de ações judiciais de cobrança e datas para a exclusão do cliente de listas de inadimplentes. Se o plano falhar, ocorre revisão dos contratos e repactuação das dívidas em plano compulsório.